segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Do vazio no Budismo para um pensamento em Lacan. Aqui vai um conto budista...

O mestre japonês Nan-in concedeu uma audiência a um professor de filosofia. Aquele professor devia estar cansado de tanto andar quando chegou à cabana de Nan-in. E Nan-in disse: Espere um pouco. O homem devia estar com pressa. A mente está sempre apressada, está sempre procurando realizações instantâneas. Para a mente, é muito difícil esperar, quase impossível.

Nan-in disse: Vou preparar um chá para você. Você parece cansado. Espere um pouco, descanse um momento, e tome uma xícara de chá. Depois podemos conversar. E Nan-in ferveu a água, e começou a preparar o chá. Mas ele deve ter ficado observando o professor. Não só a água estava fervendo, o professor também estava fervendo por dentro. Não só a chaleira estava fazendo ruídos, o professor estava fazendo ainda mais barulho dentro dele, tagarelando, falando sem parar. Ele devia estar se preparando - o que perguntar, como perguntar, por onde começar. Devia estar num profundo monólogo. Nan-in deve ter ficado sorrindo e observando: Este homem está muito cheio, de tal maneira, que nada pode penetrá-lo.

Ao servir o chá, Nan-in encheu a xícara de seu visitante, mas continuou despejando sem parar. O professor começou a ficar apreensivo, pois o mestre não parava de despejar. A xícara estava transbordando. Logo o chá escorreria para o chão. Então o professor disse: Pare! O que está fazendo? Nem mais uma gota de chá cabe nesta xícara. Você está louco? O que está fazendo? E Nan-in disse: O mesmo acontece com você. Você está alerta para o fato de a xícara estar cheia, nada mais podendo conter, mas por que não está assim tão consciente a respeito de você mesmo? Você está transbordando com opiniões, filosofias, doutrinas, escrituras. Já sabe demais. Nada posso lhe dar. Você viajou em vão. Antes de vir até mim, deveria ter esvaziado a sua xícara. Então, eu poderia despejar algo dentro dela. Como esta xícara, você também está cheio de opiniões e idéias. Como posso mostrar-lhe o Zen, sem que antes você esvazie a sua xícara?

E eu lhe digo que você encontrou uma pessoa mais perigosa ainda. Eu não permitirei nem uma xícara vazia, pois você a encherá de novo. Você está tão viciado, ficou tão habituado, que não deixa a xícara ficar vazia nem por um momento. Assim que vê o vazio em qualquer lugar, começa a preenchê-lo. Você tem tanto pavor do vazio, tanto medo. O vazio se parece com a morte. Você irá preenchê-lo com qualquer coisa, mas o preencherá. E eu o convidei para vir aqui, para quebrar completamente essa xícara, de modo que, mesmo que você queira, não a poderá encher.

Diz o budismo: mesmo vazio, se você está presente, então está cheio. Até o vazio preenche você. Se você sente que está vazio, não o está absolutamente. Você está aí. Apenas o nome mudou. Agora você se chama vazio. A xícara não adiantará nada. Tem de ser quebrada completamente.

Só podia acontecer com um professor de filosofia. A história diz que um professor de filosofia foi ver Nan-in. Ele deve ter ido por motivos errados, pois um professor de filosofia, como tal, está sempre errado.

Filosofia significa intelecto, raciocínio, pensamento, argumentação. E esta é a maneira de estar errado, pois você não pode amar a existência se gosta de argumentar. A argumentação é a barreira. Se você argumenta, discute, você está fechado. Toda a existência se fecha para você. Então, você não está aberto, e a existência não se abre para você. Quando você argumenta, você afirma. Afirmação é violência, agressão, e a verdade não pode ser conhecida por uma mente agressiva, a verdade não pode ser descoberta pela violência. Você só conhece a verdade quando ama. Mas o amor nunca argumenta. Não há argumentação no amor, pois não há agressão.

Lembre-se: não apenas aquele homem era um professor de filosofia; você também é. Todo homem carrega sua própria filosofia; e todo homem é um professor, à sua maneira, pois você professa as suas idéias. Acredita nelas. Você tem opiniões, conceitos. Por causa das opiniões e conceitos, seus olhos estão embaçados, não podem ver; sua mente é estúpida, não pode conhecer. Idéias criam estupidez, pois quanto mais idéias existem, mais a mente está carregada. E como a mente carregada pode conhecer? Quanto mais idéias existem, mais elas se tornam como poeira que se acumula sobre um espelho. Como pode o espelho refletir? Sua inteligência fica realmente coberta por opiniões, pela poeira, e qualquer pessoa com opiniões certamente será estúpida e sem brilho.

Por isso os professores de filosofia são quase sempre estúpidos. Eles sabem demais para realmente saberem alguma coisa. Estão muito carregados. Pode haver diferenças de quantidade, mas todas as mentes são qualitativamente as mesmas, pois a mente pensa, argumenta, coleta, junta conhecimento e torna-se estúpida. Apenas as crianças são inteligentes. E se você puder preservar sua infância, se puder recuperá-la continuamente, você permanecerá inocente e inteligente. Se você acumula poeira, a infância é perdida, a inocência deixa de existir, e a mente torna-se estúpida e embaçada.

As pessoas que estão cheias de perguntas, estão sempre procurando respostas,. É tolice preocupar-se com perguntas e respostas. É sempre assim, pois a mente gera perguntas. A mente é um mecanismo para criar perguntas. Alimente-a, e ela lhe dará uma pergunta, e muitas outras se seguirão; dê-lhe uma resposta, e imediatamente ela a converterá em muitas perguntas. Você está aqui cheio de perguntas. Sua xícara já está cheia. ...

Vazio significa que nem a xícara restou. Todas as paredes desapareceram; O fundo da xícara caiu. Você tornou-se um abismo. Muito é possível, se você permite. Mas permitir é árduo, pois para permitir, você terá de se render. Vazio significa rendição. Nan-in estava dizendo àquele professor: Incline-se, renda-se, esvazie a sua cabeça.

No fundo, a pergunta é uma só — a ansiedade, a angústia, a falta de sentido, a futilidade de toda esta vida, sem saber quem você é. Mas você está repleto. O trabalho aqui será uma destruição, uma morte. Se você estiver pronto para ser destruído, algo de novo surgirá. Toda destruição pode tornar-se um nascimento criativo. Se você está pronto para morrer, pode ter uma nova vida, pode renascer. O fenômeno real, a transformação, acontecerá em você. Haverá sofrimento, pois nenhum nascimento é possível sem sofrimento. Muita angústia surgirá, pois você a tem acumulado, e ela tem de ser descarregada. Uma purificação e catarse profundas serão necessárias.

Quando o sofrimento é insuportável, a bem-aventurança está muito próxima. Por isso não tente escapar do sofrimento — esse é o ponto onde você pode pôr tudo a perder. Não tente evitá-lo; passe por ele. Não tente achar um jeito de dar uma volta. Não, isso não adiantará. Passe através do sofrimento. O sofrimento queimará você, Destruí-lo-á, mas, na verdade, você não pode ser destruído. O que pode ser destruído é apenas o lixo que você acumulou. O que pode ser destruído é algo que não é você. Quando tudo isso for destruído, você sentirá que é indestrutível.

Seja vazio, mas não pense isso, do contrário, estará enganando a si mesmo. Você trouxe muitas filosofias com você. Abandone-as. Elas não o têm ajudado absolutamente; não têm feito nada por você. Já é tempo, agora é o momento certo. Abandone-as completamente, não apenas partes, fragmentos delas. Sua mente é uma bagagem desnecessária. Você está carregando um peso desnecessário. Abandone-o.

Buda costumava dizer: Onde quer que você experimente a água do mar, o gosto é sempre o mesmo, sempre salgado.