Faz certo tempo que ocorreu aquele acidente no Morro do Bumba. Faz um tempo ainda maior que não posto nada por aqui. Mas, estando de volta, venho aqui para, mais uma vez, questionar certas conclusões que acabam tornando-se uma espécie de parâmetro da normalidade, para quase todos à minha volta. Sem que isso deixe de causar mais a devida estranheza que tanto precisa causar.
Após essa tragédia, eu acompanhei, pela tv, muitos atores, cantores, apresentadores e todo tipo de celebridades opinando sobre o acidente. Foram opiniões com um conhecimento de causa que, sinceramente, me pareceu até que eram eles os pobres desabrigados. Houve ainda depoimentos comovidos e uma enorme quantidade de cobranças sobre aqueles que supostamente seriam os maiores responsáveis por aquele local se encontrar ocupado por casas irregulares.
O que eu tenho para escrever aqui é o seguinte... Aparecer para entrevistas para falar sobre essa tragédia é, em minha opinião, de um oportunismo sem fim. Parece-me importante questionar, primeiro, quem decide aparecer, apenas, para atribuir aos outros a responsabilidade e o dever de salvaguardar a vida de outras pessoas. É pertinente interrogar como essas pessoas, que aparecem na tv, simplesmente andavam por sua própria cidade, sem sequer estarem cientes que à sua volta existiam problemas respectivos à moradia e infraestrutura; ou, admitindo a possibilidade de estarem cientes a respeito de tais problemas, essas pessoas optaram por não tomar partido para evitar acidentes como o que ocorreu no Morro do Bumba. É nesse ponto que, falar sobre a responsabilidade dos outros, ao invés de sua própria escolha de não se envolver previamente com esses problemas, é o momento exato do oportunismo.
Protestos acalorados, opiniões politicamente corretas, shows e jogos beneficentes, etc. Perante a audiência para quem essas pessoas se dirigem, elas encontram uma forma de vender a idéia de que sempre estiveram sensíveis ao mal estar vivido pelos desabrigados, que a omissão das autoridades é o motivo responsável pela ocorrência de um desabamento e que resultou em tantas mortes. As pessoas aparecem para cantar, dar opiniões e falar de política quando ocorre uma tragédia. Mas, o que acontece quando não tem uma tragédia para fazer um show? Quando não tem um desabamento para criticar o problema de moradia da região onde se mora? Se essas pessoas não podem aparecer para mostrar os seus ideais e seus valores afirmativos, sem evidenciar sua própria imagem, para onde vai toda a militância e a vontade de resolver os problemas de sua própria cidade? Convém interrogar.
Outra questão se levanta tão importante quanto delicada. É uma afirmação que causa em muitas pessoas desconforto, mas que pode ser indício de uma questão que parece se tentar não revelar. Foi em um local repleto de lixo e num terreno irregular, no alto de um morro e sem a menor preparação para esse fim... Que as pessoas escolheram levantar suas casas. Existem sérios problemas de moradia em muitas cidades. Existe também o descaso do governo, o problema da distância de casa para o trabalho e tudo mais... Porém, construir sua própria casa no alto de um morro, onde sabidamente as chuvas costumam arrastar casas, é colocar a própria vida sob o controle do acaso. É esperar que uma melhor sorte lhe venha daí - melhor do que aquela que você obteve para si mesmo. O problema disso é que a chuva - ou qualquer outro fator dessa ordem: doença, acidentes, etc. - não obedece a nenhum tipo de moralidade. Portanto, não irá punir as razões pelas quais uma pessoa encontra-se numa situação caótica de moradia, ainda que existam condições sabidamente adequadas para se viver. Vou colocar um exemplo que considero claro para tratar sobre a questão da escolha, e que tem haver com muitas pessoas e diz respeito ao local de construção de suas casas. Quando as autoridades tomam alguma atitude, frente o risco de desabamento em determinada área, elas costumam mandar agentes para avaliar os riscos que as casas ali construídas oferecem, no caso de sofrerem com novas chuvas. Como sabem, as casas que oferecem tais riscos precisam ser desocupadas. Quando as pessoas são informadas que a casa corre risco de desabar, qual é normalmente o comportamento habitual nesses casos? Não desocupar as casas. Lacan cita um exemplo - para falar de outra coisa, é verdade - que me parece fundamental para abordar a questão da escolha. Um assaltante vira-se para a mulher e diz: "Ou passa a bolsa ou perde a vida!". E diante dessas premissas apresentadas a pessoa faz sua própria escolha. Mas, o que fica oculto nessa interrogação é o erro hermenêutico existente nessa oferta. A oferta correta seria: ou passa a bolsa e fica com a vida, ou perde a vida e depois perde também a bolsa. Não é uma escolha perder a bolsa. Ela será invariavelmente perdida nesse assalto. A única garantia que lhe é, injustamente, oferecida é ficar com sua própria vida. É a única coisa a qual lhe é oferecida e você pode garantir. E o que se costuma ver é que, o querer a vida não está acima de perder a casa. E me parece que o maior problema está nesse ponto onde a pessoa, mesmo numa oferta que parece irrecusável, mesmo numa escolha lógica onde ela só pode garantir uma única coisa - sendo essa a mais preciosa delas -, não é capaz de responsabilizar-se a fim de garantir sua própria sobrevivência. Se num momento iminente, em que dever garantir a vida lhe é uma opção, se a pessoa não faz essa escolha, me parece que em todos os outros momentos em que não exista essa pressão, ela se coloque não responsável pelas coisas que precisa e não tem, mas que sabe que deveria ter.
Portanto, o importante não está em alimentar uma postura de considerar aqueles que são os mais responsáveis. Todos fizeram escolhas: morar num morro íngreme e perigoso é uma escolha. Aparecer na tv para discursos políticos somente em momentos de tragédias é também uma escolha. Como também é o de não cumprir com seus deveres enquanto governante. Mas, é preciso você avaliar que escolhas possam fazer desaparecer a questão de suas queixas. E essas escolhas não terminam sempre tornando o outro fonte de seus próprios problemas. É preciso perceber que a sua participação na questão que você se queixa revela o seu real envolvimento com ela, e não exatamente o quanto você sofre ou se revolta. Isso vai além do que responsabilizar os outros pelos os incômodos acidentes que a vida causa em todos nós. Consiste em apropriar-se da questão que te afeta; responsabilizar-se por sua queixa. Existem pessoas trabalhando para melhorar o problema de moradia em áreas com risco de desabamento que sequer sabemos os nomes. Elas foram afetadas por essa mesma questão e escolheram atuar. É assim que a sua inquietação saiu do campo da queixa para a atuação, com a finalidade de obter melhorias frente esses problemas - problemas ao qual se queixava. É nesse ponto onde o que não pode ser feito é encarado com tranqüilidade. Pois, existe a confiança singular de que aquilo que você queria mudar para melhor, está sendo feito e por você.
Tomar com respeito a questão do acidente no Morro. Tomá-la como importante, com o intuito de levar adiante aquilo que se queixa e se responsabilizar pelas conseqüências que essa escolha acarreta e traz de mudança na vida de outras pessoas, é o melhor que se pode obter.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
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