terça-feira, 28 de abril de 2009



A crença das pessoas sobre o inexplicável é uma característica surpreendente e também estranha. É incrível como toma a forma de uma convicção capaz de sobrepor-se mesmo diante da explícita contradição. E quando crenças opostas se encontram formando uma única crença central, fica ainda mais esquisito. Tomemos como exemplo: Deus: um ser (ou Força) supremo do universo; Sorte/Azar: um acontecimento qualquer que ocorre contrário à(s) sua(s) outra(s) probabilidade(s) ou vontade individual; Destino: o caminho pré-determinado na vida de todo homem. As pessoas utilizam todos estes conceitos reunidos, como se fizessem parte de sua única crença, ainda que eles se excluam por ordem de incongruência. Num mesmo dia, e em diferentes situações. Vamos observar: se você afirma que teve sorte (ou azar) em determinada ocasião, você considera a conclusão do evento como lhe sendo desconhecida e improvável. Isso é, em teoria, contrariar qualquer crença em Deus que você assumir (vou considerar o Deus católico para exemplo. Mas, qualquer um deles é admissível). Por que Deus é ONISCIENTE. Portanto, nada acontece sem a sua vontade, sem o seu conhecimento. Então, por que chamar de sorte/azar um incidente ocorrido ao acaso se o que lhe aconteceu ocorreu por vontade Dele? Bem, também não pode ser chamado de Destino. Por que, você não tem sorte ou azar quando o que vai lhe acontecer está previamente definido. Tinha que acontecer. Apenas você não sabia. Mesmo um "destino que vai sendo escrito" está, na verdade, considerando que podem ocorrer diferentes possibilidade para um mesmo evento. Uma característica que é típica de "sorte ou azar". Se são sinônimos não convém ficar chamando uma coisa por outra. É preciso apenas um único conceito. Logo, um deles está sendo naturalmente excluído, o que retoma a questão inicial de se orientar por uma única crença. Vamos à próxima sentença; Você pode chamar de destino os acontecimentos que ocorrem na sua vida. Mas isso é também renegar sua crença em Deus. As pessoas receberam Dele o dom do livre arbítrio. Então, são livres para tomar suas decisões - boas ou ruins. No Destino o que acontece com você não é fruto, naquele momento, de sua decisão. É a ocorrência daquilo que deveria lhe acontecer naquele momento ainda que pareça uma decisão sua. Isso contrária o conceito de dom do livre arbítrio e, por consequência, a própria crença em Deus. Como o de destino e sorte/azar foi anteriormente explicado, nada restaria acrescentar nessa popular contradição humana. Porém, o mais estranho é que a própria crença em Deus é contraditória. Como, diabos (não resisti ao trocadilho!), Deus pode saber de tudo e presentear as pessoas com o livre arbítrio? Como ele pode saber daquilo que eu ainda não escolhi fazer? Os ensinamentos sobre Deus são repletos dessas contradições que os religiosos se esquivam em concluir. Particularmente, a fé em um Deus, e em qualquer circunstância, é uma coisa penosa. Mesmo que você reconstrua um Deus seu, próprio, ainda é estranho. Por que você não fez sua descoberta sobre Deus em uma experiência sagrada entre você e o Divino. Você acreditou em Deus por que assim lhe foi ensinado! Então, quando tudo que você sabe sobre a existência de Deus vem de uma estória completamente contraditória - e Deus sempre permanece oculto para aumentar as suspeitas -, reconstruir um Deus próprio nada mais é do que fabricar sua própria versão mal contada da mesma estória. Ainda que eu tenha em boa conta as pessoas que se orientam por qualquer tipo de crença, tenho a certeza de que elas se afastam em tentar entender esse assunto. Morando em "São Salvador, neguinho!", é ainda mais impressionante. Elas adotam o culto ao Catolicismo, ao Candomblé e ao Espiritismo em uma única semana! Dia de ir no centro, dia de fazer os trabalhos, dia de ir no Bonfim... Eu nunca li sobre nenhum exú sendo citado no livro de Alan Kardek, nem li na bíblia sobre Deus encontrar com Oxalá na cúpula dos "deuses mais economicamente desenvolvidos no mundo", nem nada parecido... E ainda sim mantenho minha simpatia pelas pessoas. Por que mesmo sendo contraditório, equívoco ou hipócrita, ainda é algo totalmente humano! Não somos deuses, nem animais... mas o resultado desse meio termo. Não seremos melhores do que isso. E essa consciência me permite uma enorme diversão com as pessoas, convivendo e azucrinando suas esquisitices, sem o esforço de convencê-las de nada, em absoluto. Pode ser isso, ou pode ser que, como disse o dr. Dráuzio Varela, eu seja "um completo imoral". E aí, na verdade eu não me importe. Ainda sim considero, para mim, de bom tamanho... Vou considerar problema somente quando virar o criminoso!

segunda-feira, 27 de abril de 2009

The Reader (O Leitor)


Vergonha. O sentimento pós-guerra do povo alemão ao regime nazista, que foi responsável pela perseguição e massacre de 6 milhões de pessoas. Como explicar que o apóio ao Holocausto foi uma decisão que em certo momento pareceu correta? A Alemanha viveu atormentada por um período de questionamentos frente sua decisão de consentir cegamente com o regime nazista que enviava milhares de pessoas à morte nos assombrosos campos de concentração. Passado esse período, existe uma clara tentativa de rapidamente levar aos tribunais os responsáveis, para recuperar a honra de um país que precisa provar às pessoas que essas atrocidades não serão repetidas no futuro e que o orgulho nacional será resgatado através de caminhos morais e mais humanos. É possível que uma pessoa suporte amar outra depois de ter sido inexplicavelmente abandonada e ainda descobrir anos mais tarde que a pessoa que amou é acusada da morte de 300 inocentes? É possível para alguém viver num país manchado pela vergonha de seus atos políticos e amar a pessoa que representa o passado abominável de toda esta estória? O abandono e as falhas morais podem ser vencidas pelo amor de outrora, ainda que esse amor nunca tenha sido apagado? Sim. Para todas as perguntas a mesma resposta: sim! É triste dizer que sim... e também seria dizer não. O motivo, tratado no filme, para este amor permanecer vivo e aprisionado mesmo diante destas tristes revelações é algo que escapa, às vezes nem é mesmo notado, mas que surpreende por se confundir com a própria tragédia cometida pelo povo alemão no Holocausto: uma omissão equívoca que provoca atos que não podem mais ser mudados e disso resulta uma insuportável vergonha. É uma amarga ironia - ainda que elegante - assistir o amor de um casal ser navegado por sentimentos "menos nobres", sendo que o sentimento que norteia esta relação se confunde com o próprio sentimento que o povo alemão experimenta na mesma época. É impressionante você construir um romance com essas condições e é exatamente o que ocorre nesta estória de amor: que não se mantém viva pela beleza tipicamente conhecida dessas estórias, mas, sim, pela incômoda vergonha decorrente da imaturidade (em diferentes sentidos) entre duas pessoas que em certo momento são colocadas em lados opostos da história política alemã e do regime nazista na segunda guerra.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Wake up!
























Era domingo. Eu zapeava a tv enquanto pensava no por quê do meu fígado ter me abandonado completamente no sábado noite. Em verdade, eu sabia o motivo. E era isso o que estava me preocupando. Ele certamente não iria voltar - e eu estaria só de agora em diante. Nesse momento encontrei o Manhattan Connection ainda no começo. Este é o único noticiário que me dá um certo prazer em assistir. Foi quando eles apresentaram a exposição de Ruud Van Empel com sua série de imagens cheias de cores e com crianças. Suas obras parecem oníricas e tem um forte apelo visual. Escolhi esta entre outras igualmente interessantes. Pode-se conferir o ensaio completo nesse link: http://www.stuxgallery.com/site/www/artist_gallery/26/369

Music is power (Yeah)

Bem como a maioria das pessoas eu também tenho uma especial ligação com a música. Ela esteve presente em muitos momentos importantes da vida. Serviu-me para entender os acontecimentos que ocorriam comigo quando eu mal era capaz de saber o porque de estar envolvido com certas situações ou pessoas. Novamente: bem como acontece com a maioria das pessoas! Eu sei. É a pura verdade. É assim com quase todo mundo. O que acontece é que eu sempre fiquei inquieto com minhas próprias dúvidas musicais. Eu nunca entendi por que de repente era tomado por uma forte emoção ao ouvir uma música pela primeira vez. Ou, ainda, por que certas músicas captavam melhor meu momento do que outras. Bem como, o que define o gosto musical de uma pessoa. Está última, me fez, inclusive, criar uma boa quantidade de inimizades, mesmo depois de haver desistido encontrar uma resposta para esta questão. Eu tenho um amigo que ainda ataca os incautos sobre suas preferências musicais, ao passo que diminui minhas chances de expandir meu círculo social. Contudo, tudo mudou nesse domingo, quando velhos fantasmas (da ópera, certamente!) vieram novamente me assombrar. Eis que sou novamente convocado a retomar esta antiga questão. Voltei a ficar disposto para encontrar uma resposta. Para encerrar este assunto de uma vez. Sim, eu precisava encontrar... Pois bem, procurando informações sobre o tema descobri que Freud passou pela mesma angústia a propósito da música: "luta em mim contra a emoção quando não consigo saber por que estou emocionado, nem o que me comove". Estranho saber disso... Até onde sei, Freud se mostrava interessado apenas por pinturas e literatura, mas, afastava à música de suas especulações. Parece que pela impossibilidade de compreender seus efeitos através da análise racional. Pesquisador acurado, Freud sempre insistiu em descobrir o sentido e o conteúdo do que uma obra supostamente representava. Mas, será possível falarmos de representação, na música, nas mesmas condições que na pintura ou na literatura? Vejamos: a forma de acaso, que é própria da música, como, sua duração, seu tempo de desdobramento, suas variações, podem fazer com que ocorram mudanças em diversas etapas da composição. Como resultado, a música permite a possibilidade de variações aleatórias no transcorrer de sua duração. O que equivale dizer que, essa aleatoriedade da música (que praticamente não ocorre no Axé e no Reggae, por exemplo) provoca encanto ou resistência no compositor e também no ouvinte (tudo explicado!) - e que tem em seu efeito o poder da música de emocionar. Até aqui tudo bem. Então, retomando: sabemos agora do duplo poder que a música tem; o de tornar manifesta a esfera dos sentimentos, permitindo-a, por conseguinte, a uma possível tradução na linguagem (interpretação); e revelar um fundo primitivo de onde estes sentimentos provêm. "O que a língua musical pode exprimir", escreveu Richard Wagner, "é feito unicamente de sentimentos e impressões: ela exprime, sobretudo, numa plenitude absoluta, o conteúdo sentimental da língua puramente humana, desligada de nossa língua verbal, que se tornou um simples órgão do entendimento”. Temos aqui um ponto importante para tratar, por que algo escapa à composição musical. Aquilo que sequer levamos em consideração e que ultrapassa a intenção do compositor na criação da música. É exatamente isso que escapa à representação: o registro da voz. Da mesma forma, ocorre uma ação semelhante entre o olhar dos pais sobre o filho, que resulta num processo inconsciente que permite ao sujeito constituir-se, ainda pequeno, a partir da imagem que os pais constroem, em voz alta, como sendo sua tal identidade. Lacan considera que a voz mantém com o corpo uma relação de separação (a voz da mãe que some quando ela se afasta) e, em virtude disso, participa do processo de desenvolvimento do indivíduo. O importante, então, sobre a música não repousa sobre a possibilidade de interpretação individual. Mas, seu impacto, por conta de sua propriedade. Na medida em que ela obedece à condição de evocar no sujeito sentimentos análogos entre a música e a relação de presença/ausência com a voz de seus pais. Ela (música), além de tudo, tem o poder de relacionar a influência crítica dos pais, também transmitida aqui pela voz, na formação da consciência moral do sujeito, o que sugere que as características musicais captam essa essência da identidade, muito além de uma interpretação produzida na linguagem verbal. A consciência moral é a instância que estabelece as regras que foram transmitidas para cada indivíduo. Ela faz ligação entre aquilo que está pré-estabelecido no mundo e a conduta ética individual. Portanto, se a música participa de uma recriação do mundo que permite o sujeito reconstruir um material em que realiza suas fantasias além das regras, vencendo sua própria condição existencial falha – além de fazê-lo experimentar a satisfação outrora encontrada na infância pelo sonoro das vozes parentais –, é realmente porque gera um modo de comunicação diferente do que é gerado pela linguagem. Se a música é capaz de realizar todo esse processo é por que ela decorre de um sentimento nostálgico fundamental aprisionado no desejo: a perda da excelência de amor. Pode-se entender como sendo uma condição necessária para o amadurecimento individual. Todavia, o desejo nunca chega a se resolver totalmente no investimento do objeto que busca conquistar inteiramente. Em resumo: a música aponta para os vestígios de uma satisfação para sempre desaparecida, ao passo que se manifesta também na própria insatisfação que renova o desejo. Além da insatisfação existencial, que incita o artista a acender para a criação efetiva, a música remete a essa satisfação impossível de enunciar e explicar, uma satisfação anterior à lembrança do que ela representa, e cuja natureza explicaria sua dificuldade de se deixar transcrever na linguagem. A música expõe, assim, o paradoxo de gerar a comunicação aquém das palavras e na saudade comum de uma satisfação definitivamente perdida, posteriormente sendo relacionada com o modelo materno. De acordo com o psicanalista A. Didier-Weill, existem quatro tempos lógicos da relação musical. Mas, primeiro uma pergunta: o amante da música ouve como sujeito ou como Outro (para quem a música foi supostamente composta)? O primeiro tempo situaria o ouvinte no lugar do Outro-ouvinte, que receberia do músico uma espécie de resposta para sua própria questão, e até então mantida inconsciente. Quando desprovida de angústia - como mostra o evidente prazer da escuta musical - a resposta do músico repousaria no trabalho de transcender aquilo que lhe impede de realizar o que deseja, um trabalho que tem em si a capacidade de introduzir o Outro-ouvinte no mesmo confronto que evocou no músico a necessidade de dar vida à música. O encontro do Outro-ouvinte e do músico se efetuaria, então, com base num acordo inconsciente, como se eles só pudessem encontrar-se ao comemorar, no reconhecimento de que, tanto um quanto o outro, não poderão resolver nem seus próprios conflitos nem resolverem um do outro. (Reconhece-se aí a definição lacaniana do amor: dar o que não se tem.) O segundo tempo da relação musical, portanto, vê o Outro-ouvinte colocar-se numa posição ativa como de um músico, por ter recuperado sua questão e enunciado a impossibilidade de dissolvê-la (no primeiro tempo é o músico se encontra nessa posição). O terceiro tempo permitiria ao Outro-ouvinte (assumindo aqui o papel do músico), por conseguinte, identificar-se com o artista como o Outro que representa um amor transferencial, por que estabelece uma relação de dirigir esse amor para uma identidade imaginária que não pode retribuir como é preciso. O impacto dessa realidade no Outro-ouvinte é a de realizar a improvável ligação entre a Fala do mundo que lhe fala torna-se, ao mesmo tempo, sua própria fala. Por fim, o quarto tempo seria a introdução de uma explosão temporal, aquela que, ao mesmo tempo, surpreende o ouvinte e arremata seu prazer. O prazer musical conduz pelos vestígios de uma satisfação arcaica, por ele deixar advir no ouvinte a surpresa da questão que toca no mal-estar fundamental de todo ser, num nível inconsciente. E o fato de a música ressoar no vazio íntimo do sujeito, transpondo sua dúvida como resposta, significa que o Outro-ouvinte, profundamente interpelado pelo que desencadeia nele uma espécie de auto-reconhecimento, assume uma participação ativa e incessante no trabalho criativo do músico, leva-o adiante, por assim dizer, em seus efeitos de resolução. Lacan diz: "Uma fala que produz ato e que faz com que um dos sujeitos se descubra, depois, diferente do que era antes”. Ainda melhor no comentário de Boris de Schlozer "O que caracteriza essencialmente o artista (...) é a produção de uma coisa cuja geração, cujo próprio processo de geração, modifica seu autor, permitindo-lhe transcender-se, ser, ao mesmo tempo, plenamente ele mesmo e um outro." A atividade criadora consistiria, sempre segundo esse autor, "não unicamente em gerar um sistema orgânico, mas ainda em produzir conjuntamente o próprio autor desse sistema, o que nele se acha imediatamente presente”. Eu encerro com um trecho citado por um artista que admiro e em que ele exemplifica o que foi dito acima:


"Essa é uma pequena estória. Eu gosto de chamar "A maldição". A música "Alive (Vivo)", que está em nosso primeiro disco. Foi realmente transformada através dos anos. E, não é muito por como nós a tocamos ou pelo arranjo. Mas sim, pela interpretação. Então, a estória original que foi contada na música é a de um jovem sendo confrontado com algumas verdades chocantes. Uma é que, o cara que ele acreditava ser seu pai enquanto crescia... Não era. E a dura verdade número dois foi que, o verdadeiro pai morreu poucos anos antes. Então, quando a mãe soltou esta informação da morte do pai verdadeiro, isso mostrou que o garoto não estava terrivelmente instável naquele momento de seu desenvolvimento bastante confuso. Eu sei disso porque eu conheci o cara. Não bem... Mas, conheço ele. Quer dizer, o cara era eu. Mas, eu mal me conhecia naquele tempo. E então, ele toma todas essas notícias como uma maldição. Bom, você me conta esses segredos, eu supostamente devo perdoar... Mas, eu tenho que arranjar uma maneira, você sabe, de viver com isso. E encontra o pai morto, mas eu continuo vivo e tenho que lidar com isso. Então, foi uma maldição, você sabe, "Eu continuo vivo (I'm still alive)". Então, alguns anos depois estávamos tocando para platéias maiores. E elas estavam respondendo a esse refrão de uma maneira que você nunca imaginou. O povo pulando nos alambrados, usando seus corpos para se expressarem, e gritando, cantando junto "Eu continuo vivo" em massa. Então, toda noite eu olhava para isso e via as pessoas reagindo com suas próprias interpretações positivas. É realmente incrível. A platéia muda o sentido destas palavras e... Quando eles cantam "Eu continuo vivo", é como se estivessem celebrando. E... O negócio é que... Quando eles mudam o significado daquelas palavras... Eles acabam com a maldição." (Eddie Vedder, Pearl Jam - Storytellers, 2006).

Notas: Post escrito por mim e adaptado a partir de um texto original (abaixo). Tais como as idéias de Lacan, para melhorar sua compreensão.
Texto: KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Garota que brigou com seu Coração (Contos)

Play. Ela apertou o botão do som de seu quarto. Escolheu o melhor de sua coleção de discos. Aquele era um dia perfeito para ouvir seus preferidos: Damien Rice, Costello e também o veho Dylan. Enquanto a música tocava no seu quarto, ela ia para janela fechar a cortina. O tempo em Salvador, a cidade do axé e do sol o ano inteiro, estava cinzento e embaixo de muita chuva. Enquanto acompanhava os pingos d`água escorrendo pela sua janela, ela se deu conta que o tempo só não estava pior lá fora do que dentro dela. Fechou a cortina enquanto fechava seus próprios olhos. Procurou pelo seu travesseiro e afundou seu rosto inteiro dentro dele. Só conseguia pensar como ele tinha fodido com tudo. Tentava achar uma explicação para se convencer de que tudo aquilo poderia ter sido evitado. Não podia. Ela, então, fez o que qualquer pessoa sensata faria. Ela amaldiçoou o mundo. Bem no momento em que o sábio Costello cantava "Alison, I know this world is killin you". O idiota partiu o coração dela de verdade. Ele não foi primeiro, pois muitos outros haviam feito o mesmo antes dele. A pior coisa é que ela sabia que a sensação de vazio iria voltar outra vez. Esse buraco só aumentava cada vez que ela se dava uma nova chance. Ela virou seu rosto para buscar mais ar e deu de cara com as fotografias em sua parede. Todos os lugares, todos os momentos, todas as palavras ditas na hora certa. Ela não iria viver mais nada daquilo com ele. Ela queria ficar mais tempo juntos, mas estava difícil deixar de se importar com aquelas palavras duras sobre ela. O telefone tocava sem parar, todas as suas amigas estavam ligando preocupadas. Elas queriam ajudar, mas não podiam. O velho Dylan estava arranhando seus dedos nas cordas do violão com as notas mais tristes e sua voz melancólica. Ela estaria sozinha de agora em diante. Nada de mãos dadas pelas ruas de cidade, nem mais sua cabeça sobre o ombro dele no religioso cinema de domingo. Toda aquela merda clichê que quem está sozinho desdenha era seu paraíso aqui na terra. Nada de encher a cara, enquanto sentia as mãos em suas coxas e nem daquele sexo no chão que terminava na cama, que a fazia gozar de tremer as pernas. Não tinha mais nada que ela pudesse fazer. Ela só pensava em retroceder sua vida para saber onde foi que tudo começou se perder. Não dava mais para corrigir. Estava na hora de fazer aquilo: tirar as fotos da parede, guardar os bilhetes deixados escondidos, esconder os malditos bichos de pelúcia - menos aquele do dia dos namorados. Esse poderia ficar mais um pouquinho antes de ir. Ela sabia que essa dor nunca iria passar - ainda seria aguda por mais uns dias. Ela só não queria admitir a triste verdade: olhar a porra do mundo sem o colorido que pintou. Mas, terminou. O idiota partiu o coração da garota.