terça-feira, 14 de abril de 2009

Music is power (Yeah)

Bem como a maioria das pessoas eu também tenho uma especial ligação com a música. Ela esteve presente em muitos momentos importantes da vida. Serviu-me para entender os acontecimentos que ocorriam comigo quando eu mal era capaz de saber o porque de estar envolvido com certas situações ou pessoas. Novamente: bem como acontece com a maioria das pessoas! Eu sei. É a pura verdade. É assim com quase todo mundo. O que acontece é que eu sempre fiquei inquieto com minhas próprias dúvidas musicais. Eu nunca entendi por que de repente era tomado por uma forte emoção ao ouvir uma música pela primeira vez. Ou, ainda, por que certas músicas captavam melhor meu momento do que outras. Bem como, o que define o gosto musical de uma pessoa. Está última, me fez, inclusive, criar uma boa quantidade de inimizades, mesmo depois de haver desistido encontrar uma resposta para esta questão. Eu tenho um amigo que ainda ataca os incautos sobre suas preferências musicais, ao passo que diminui minhas chances de expandir meu círculo social. Contudo, tudo mudou nesse domingo, quando velhos fantasmas (da ópera, certamente!) vieram novamente me assombrar. Eis que sou novamente convocado a retomar esta antiga questão. Voltei a ficar disposto para encontrar uma resposta. Para encerrar este assunto de uma vez. Sim, eu precisava encontrar... Pois bem, procurando informações sobre o tema descobri que Freud passou pela mesma angústia a propósito da música: "luta em mim contra a emoção quando não consigo saber por que estou emocionado, nem o que me comove". Estranho saber disso... Até onde sei, Freud se mostrava interessado apenas por pinturas e literatura, mas, afastava à música de suas especulações. Parece que pela impossibilidade de compreender seus efeitos através da análise racional. Pesquisador acurado, Freud sempre insistiu em descobrir o sentido e o conteúdo do que uma obra supostamente representava. Mas, será possível falarmos de representação, na música, nas mesmas condições que na pintura ou na literatura? Vejamos: a forma de acaso, que é própria da música, como, sua duração, seu tempo de desdobramento, suas variações, podem fazer com que ocorram mudanças em diversas etapas da composição. Como resultado, a música permite a possibilidade de variações aleatórias no transcorrer de sua duração. O que equivale dizer que, essa aleatoriedade da música (que praticamente não ocorre no Axé e no Reggae, por exemplo) provoca encanto ou resistência no compositor e também no ouvinte (tudo explicado!) - e que tem em seu efeito o poder da música de emocionar. Até aqui tudo bem. Então, retomando: sabemos agora do duplo poder que a música tem; o de tornar manifesta a esfera dos sentimentos, permitindo-a, por conseguinte, a uma possível tradução na linguagem (interpretação); e revelar um fundo primitivo de onde estes sentimentos provêm. "O que a língua musical pode exprimir", escreveu Richard Wagner, "é feito unicamente de sentimentos e impressões: ela exprime, sobretudo, numa plenitude absoluta, o conteúdo sentimental da língua puramente humana, desligada de nossa língua verbal, que se tornou um simples órgão do entendimento”. Temos aqui um ponto importante para tratar, por que algo escapa à composição musical. Aquilo que sequer levamos em consideração e que ultrapassa a intenção do compositor na criação da música. É exatamente isso que escapa à representação: o registro da voz. Da mesma forma, ocorre uma ação semelhante entre o olhar dos pais sobre o filho, que resulta num processo inconsciente que permite ao sujeito constituir-se, ainda pequeno, a partir da imagem que os pais constroem, em voz alta, como sendo sua tal identidade. Lacan considera que a voz mantém com o corpo uma relação de separação (a voz da mãe que some quando ela se afasta) e, em virtude disso, participa do processo de desenvolvimento do indivíduo. O importante, então, sobre a música não repousa sobre a possibilidade de interpretação individual. Mas, seu impacto, por conta de sua propriedade. Na medida em que ela obedece à condição de evocar no sujeito sentimentos análogos entre a música e a relação de presença/ausência com a voz de seus pais. Ela (música), além de tudo, tem o poder de relacionar a influência crítica dos pais, também transmitida aqui pela voz, na formação da consciência moral do sujeito, o que sugere que as características musicais captam essa essência da identidade, muito além de uma interpretação produzida na linguagem verbal. A consciência moral é a instância que estabelece as regras que foram transmitidas para cada indivíduo. Ela faz ligação entre aquilo que está pré-estabelecido no mundo e a conduta ética individual. Portanto, se a música participa de uma recriação do mundo que permite o sujeito reconstruir um material em que realiza suas fantasias além das regras, vencendo sua própria condição existencial falha – além de fazê-lo experimentar a satisfação outrora encontrada na infância pelo sonoro das vozes parentais –, é realmente porque gera um modo de comunicação diferente do que é gerado pela linguagem. Se a música é capaz de realizar todo esse processo é por que ela decorre de um sentimento nostálgico fundamental aprisionado no desejo: a perda da excelência de amor. Pode-se entender como sendo uma condição necessária para o amadurecimento individual. Todavia, o desejo nunca chega a se resolver totalmente no investimento do objeto que busca conquistar inteiramente. Em resumo: a música aponta para os vestígios de uma satisfação para sempre desaparecida, ao passo que se manifesta também na própria insatisfação que renova o desejo. Além da insatisfação existencial, que incita o artista a acender para a criação efetiva, a música remete a essa satisfação impossível de enunciar e explicar, uma satisfação anterior à lembrança do que ela representa, e cuja natureza explicaria sua dificuldade de se deixar transcrever na linguagem. A música expõe, assim, o paradoxo de gerar a comunicação aquém das palavras e na saudade comum de uma satisfação definitivamente perdida, posteriormente sendo relacionada com o modelo materno. De acordo com o psicanalista A. Didier-Weill, existem quatro tempos lógicos da relação musical. Mas, primeiro uma pergunta: o amante da música ouve como sujeito ou como Outro (para quem a música foi supostamente composta)? O primeiro tempo situaria o ouvinte no lugar do Outro-ouvinte, que receberia do músico uma espécie de resposta para sua própria questão, e até então mantida inconsciente. Quando desprovida de angústia - como mostra o evidente prazer da escuta musical - a resposta do músico repousaria no trabalho de transcender aquilo que lhe impede de realizar o que deseja, um trabalho que tem em si a capacidade de introduzir o Outro-ouvinte no mesmo confronto que evocou no músico a necessidade de dar vida à música. O encontro do Outro-ouvinte e do músico se efetuaria, então, com base num acordo inconsciente, como se eles só pudessem encontrar-se ao comemorar, no reconhecimento de que, tanto um quanto o outro, não poderão resolver nem seus próprios conflitos nem resolverem um do outro. (Reconhece-se aí a definição lacaniana do amor: dar o que não se tem.) O segundo tempo da relação musical, portanto, vê o Outro-ouvinte colocar-se numa posição ativa como de um músico, por ter recuperado sua questão e enunciado a impossibilidade de dissolvê-la (no primeiro tempo é o músico se encontra nessa posição). O terceiro tempo permitiria ao Outro-ouvinte (assumindo aqui o papel do músico), por conseguinte, identificar-se com o artista como o Outro que representa um amor transferencial, por que estabelece uma relação de dirigir esse amor para uma identidade imaginária que não pode retribuir como é preciso. O impacto dessa realidade no Outro-ouvinte é a de realizar a improvável ligação entre a Fala do mundo que lhe fala torna-se, ao mesmo tempo, sua própria fala. Por fim, o quarto tempo seria a introdução de uma explosão temporal, aquela que, ao mesmo tempo, surpreende o ouvinte e arremata seu prazer. O prazer musical conduz pelos vestígios de uma satisfação arcaica, por ele deixar advir no ouvinte a surpresa da questão que toca no mal-estar fundamental de todo ser, num nível inconsciente. E o fato de a música ressoar no vazio íntimo do sujeito, transpondo sua dúvida como resposta, significa que o Outro-ouvinte, profundamente interpelado pelo que desencadeia nele uma espécie de auto-reconhecimento, assume uma participação ativa e incessante no trabalho criativo do músico, leva-o adiante, por assim dizer, em seus efeitos de resolução. Lacan diz: "Uma fala que produz ato e que faz com que um dos sujeitos se descubra, depois, diferente do que era antes”. Ainda melhor no comentário de Boris de Schlozer "O que caracteriza essencialmente o artista (...) é a produção de uma coisa cuja geração, cujo próprio processo de geração, modifica seu autor, permitindo-lhe transcender-se, ser, ao mesmo tempo, plenamente ele mesmo e um outro." A atividade criadora consistiria, sempre segundo esse autor, "não unicamente em gerar um sistema orgânico, mas ainda em produzir conjuntamente o próprio autor desse sistema, o que nele se acha imediatamente presente”. Eu encerro com um trecho citado por um artista que admiro e em que ele exemplifica o que foi dito acima:


"Essa é uma pequena estória. Eu gosto de chamar "A maldição". A música "Alive (Vivo)", que está em nosso primeiro disco. Foi realmente transformada através dos anos. E, não é muito por como nós a tocamos ou pelo arranjo. Mas sim, pela interpretação. Então, a estória original que foi contada na música é a de um jovem sendo confrontado com algumas verdades chocantes. Uma é que, o cara que ele acreditava ser seu pai enquanto crescia... Não era. E a dura verdade número dois foi que, o verdadeiro pai morreu poucos anos antes. Então, quando a mãe soltou esta informação da morte do pai verdadeiro, isso mostrou que o garoto não estava terrivelmente instável naquele momento de seu desenvolvimento bastante confuso. Eu sei disso porque eu conheci o cara. Não bem... Mas, conheço ele. Quer dizer, o cara era eu. Mas, eu mal me conhecia naquele tempo. E então, ele toma todas essas notícias como uma maldição. Bom, você me conta esses segredos, eu supostamente devo perdoar... Mas, eu tenho que arranjar uma maneira, você sabe, de viver com isso. E encontra o pai morto, mas eu continuo vivo e tenho que lidar com isso. Então, foi uma maldição, você sabe, "Eu continuo vivo (I'm still alive)". Então, alguns anos depois estávamos tocando para platéias maiores. E elas estavam respondendo a esse refrão de uma maneira que você nunca imaginou. O povo pulando nos alambrados, usando seus corpos para se expressarem, e gritando, cantando junto "Eu continuo vivo" em massa. Então, toda noite eu olhava para isso e via as pessoas reagindo com suas próprias interpretações positivas. É realmente incrível. A platéia muda o sentido destas palavras e... Quando eles cantam "Eu continuo vivo", é como se estivessem celebrando. E... O negócio é que... Quando eles mudam o significado daquelas palavras... Eles acabam com a maldição." (Eddie Vedder, Pearl Jam - Storytellers, 2006).

Notas: Post escrito por mim e adaptado a partir de um texto original (abaixo). Tais como as idéias de Lacan, para melhorar sua compreensão.
Texto: KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

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