Foi por intermédio desse encontro que nasceu Amor (Eros), resultado de um masculino passivo (amado), desejável, e um feminino ativo (amante), desejante. Convém explicar o que ocorre entre o amante e o amado. O que é o amante? É aquele que, sentindo que algo lhe falta, mesmo sem saber o que seja, supõe em outro (o amado) algo que o completaria. O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar, sem saber bem o quê. Mas, como o amado é também um ser faltante (e falante), algo também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um vazio. E mais: aquilo que o amado supõe ter para dar, não é o que falta ao amante.
O amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que tem - um não-saber que é do inconsciente.
Normalmente, as crianças têm a mãe como o primeiro objeto amoroso. Freud descobriu, em sua auto-análise, que, quando criança, teve sentimentos de amor para com sua mãe, e de ciúme em relação ao pai. Toda criança passou por isto, embora o tenha recalcado - o que vai acarretar mais ou menos dificuldades nas escolhas de objeto posteriores. Estas escolhas são mediadas por um modelo, o de um outro. Este é o processo que instaura a estruturação do sujeito. A criança que não teve ainda acesso à linguagem, que tem uma imagem imprecisa de seu próprio corpo, não tem noção do eu e do objeto, não tem sua identidade de verdadeiro sujeito. Seu investimento é auto-erótico. Tudo se passa no registro da necessidade. A estruturação implica em ultrapassar o registro da necessidade para o do desejo. O grito e o choro, inicialmente, expressão de insatisfação e desconforto, tomam-se apelo, demanda de outra coisa. A resposta do outro, sob a forma de olhar de reconhecimento, vai constituir a identidade do sujeito. É o chamado narcisismo (primário), investimento do sujeito em si mesmo, nesta imagem de si mesmo confirmada pelo outro. A esta identificação primordial vão se suceder as identificações imaginárias, ainda exteriores, a ponto de Lacan dizer que "o eu é um outro".
Freud aponta o fato pouco raro de que muitos homens não conseguem desejar a mulher que amam, nem amar a mulher que desejam. É que a mulher amada e respeitada, escolhida segundo um modelo da mãe, torna-se, por isto mesmo, proibida.
Mudando de pau para cacete.
Lacan afirma que "amar é querer ser amado". Sendo assim, no mesmo momento em que o amante constitui alguém como amado, transforma-o em seu amante, e vice-versa. Do lado do amante, está a posição ativa, que provoca automaticamente sua reversão
Mas, o paradoxo do amor ostenta seu lado fraco, um impasse e um problema, na medida em que "o sujeito não pode satisfazer a demanda do Outro se não o rebaixando, fazendo deste Outro o objeto de seu desejo".
Mesmo assim, o amor é privilégio do ser falante. Os animais não amam porque não podem demandar a um outro que produza a metáfora do amor. Por isto, se alguém responde à demanda de amor dando alguma coisa sem metaforizar, não está amando. É um engano, um logro. "Há, no rico, uma grande dificuldade de amar". Porque ele se apressa em responder à demanda, dando o que tem. Para Lacan, "dar o que se tem, isso é a festa, não é o amor". O rico, ao dar, quer se livrar do pedinte. Dar, para o rico, é o mesmo que recusar o amor. A má reputação dos ricos os dificulta de entrar no reino dos céus. Ali só entram os santos, os que, não tendo nada para dar, sendo pobres, podem amar verdadeiramente, estando aí sua riqueza.
E o analista? Este se coloca, inicialmente, na posição de amante, de demandante. Já que decidiu ser analista, este desejo lhe indicou que algo faltava. Faltava ser analista. Falta fundada no desejo de saber sobre o desejo do paciente, do amado. O analista pede, então, que o paciente lhe dê ou fale algo que ele, analista, não sabe o que é. O paciente, por sua vez, supondo que tem algo a dar, a dizer, o seu não saber sobre os sintomas, inverte a situação, passando à amante. Esta gangorra do amante-amado, vai se substituindo. O paciente sabe que tem algo não-sabido, o analista sabe que seu saber é só suposto. Assim, cada um só tem a dar um nada. Isto é a transferência, dar o que não se tem - o verdadeiro amor. Diz Lacan: "Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso recusar o saber sobre o paciente. É preciso que ele esteja sob o modo de ter, que ele não seja, ele também, sem tê-lo, que não falte nada para que ele seja tão sem saber quanto seu sujeito". Daí a importância de que o analista não compreenda e não confie na sua compreensão. É bom até duvidar dela. Ele não tem que procurar, mas convém achar, justo onde não compreende e não espera encontrar. Pois, "é somente na medida em que, decerto, ele sabe o que é o desejo, mas não sabe o que esse sujeito, com quem embarcou na aventura analítica, deseja, que ele está em posição de ter em si, deste desejo, o objeto". E se o analista sabe o que é o desejo, sabe-o pela própria experiência de se ter defrontado com a causa do desejo em sua própria análise. Foi um processo de depuração de um desejo mais forte, uma mutação na economia de seu próprio desejo, que o transformou em desejante, habilitado a ocupar o lugar de desejado, lugar de causa do desejo.
Estão dadas assim as condições para que aconteça o verdadeiro amor, no dizer de Lacan: "A cela analítica, mesmo macia, não é nada menos que um leito de amor".
Duas pessoas se encontram, com determinada freqüência, durante meses, durante anos, numa salinha trancada, onde passam horas a sós, falando do que há de mais íntimo, pessoal, secreto, sofrido, magoado, esperançoso, feliz, alegre, todas as fantasias à solta, nenhum risco de julgamento ou censura. Sem falsas promessas, dizem-se coisas que a ninguém mais é dado ouvir, nem aos pais, irmãos, parentes, amigos, namorados, amantes, parceiros, colegas; coisas que, se não fossem ditas ali, nunca mais seriam proferidas pelo resto da vida, e isso, diante de alguém total e incondicionalmente disponível a escutar, sem limites. Então, isto não é o grande e verdadeiro amor? Aquele que dá o que não tem?
Concluindo: "Se o amor é dar o que não se tem, é bem verdade que o sujeito pode esperar que lhe dêem, já que o psicanalista não tem nada mais a lhe dar. Mas, mesmo este nada, ele não o dá - e é melhor assim. É por isto que, este nada, paga- se a ele – e generosamente, de preferência – para mostrar que, se não fosse assim, isto não seria caro".
Editado e adaptado de: Idéias de Lacan - Oscar Cesarotto